terça-feira, 27 de abril de 2010

Um pouco de Rilke

Rainer Maria Rilke nasceu em Praga no dia 4 de dezembro de 1875. Depois de viver uma infância solitária e cheia de conflitos emocionais, estudou nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Suas primeiras obras publicadas foram poemas de amor, intitulados Vida e canções (1894). Publicou também Histórias do bom Deus (1900), O livro das horas (1905), A vida de Maria (1913), Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu (1923), sendo estes inspirados no período em que viveu no castelo de Duíno, próximo a Trieste (Itália). Uma de suas mais belas publicações sobre o fazer poético se encontra nas Cartas a um jovem poeta, das quais transcrevemos o trecho a seguir:


“Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão.


Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza – relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade.


Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre a sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, este tesouro de recordações? (...)


Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade.”

Canção


Antiga como as árvores

É a minha canção,

Com suas raízes tecidas pelo tempo,

Desenhando estranhas tramas

De aéreos arabescos.


Às vezes, o vento passa.

Às vezes, pairam pássaros.

E minha canção estremece,

Pendente gota de orvalho.


Tão mudo o nascer

Do meu cantar descalço!

Tão mudo o seu pisar

Terrestre, tão alado!


Que eu ficarei cantando,

Cantando só ficarei,

Até que me venha o silêncio

Com sua barca me levando

Às paragens onde eu,

Sem saber, sempre cantei.


Poema de Kalliane Amorim.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

O poema de Quintana

Houve um tempo em que eu não podia comprar livros. O jeito era ir à biblioteca, escolher alguns – eram sempre de poesia – e anotar, no caderninho que me acompanhava, os poemas que me alimentavam. Às vezes, eram encontros furtivos, pequenos versos, uns trechos apenas. Noutras, a experiência era fulminante. Não que os poetas, em minha leitura ressuscitados, viessem explodir palavras ritmadas ao meu ouvido. Não, não era isso. Era simplesmente a alegria inquieta de ler algo e me questionar: como pode alguém escrever com tanta simplicidade e dizer as coisas mais profundas? Como usar palavras tão cotidianas, invisíveis de tanto uso, e, ao uni-las, formar uma outra realidade tão fecunda de significados?

Picasso disse certa vez que só depois de uma vida inteira aprendeu a pintar como criança. Com as palavras se dá o mesmo. Há quem pense a poesia como uma carruagem cheia de enfeites, tão enfeitada que sequer conseguimos ver os talhes na madeira ou as engrenagens da roda. Procuramos a matéria bruta, viva, de que se valem os poemas, mas o que vemos é somente o disfarce... No entanto, há aqueles para quem a menor imagem, a mais cotidiana, aquela que por isso mesmo ninguém vê, é a essência da poesia. Algo assim como um garimpar incessante. Depois de prontos para a vida que nos planejam, é árduo fazer o percurso de volta, é árdua a “aprendizagem de desaprender”, como dizia Caeiro.

Um desses poemas que, na sua aparente simplicidade, se colocam como um verdadeiro tratado estético da palavra foi escrito por Mário Quintana. Chama-se O POEMA. Curiosamente, foi construído sem qualquer conjugação verbal, o que insinua sua atemporalidade, ou, como o próprio autor diria em outro texto, “eternamente/ esse gosto de nunca e de sempre”.

“Um poema como um gole d’água bebido no escuro”, sim, porque se o corpo se alimenta de matéria, o espírito se alimenta da palavra. É ingerindo essa palavra, deixando-a fazer parte de nós como algo rotineiro, que passamos a ser e a transformar. Interessante é essa comparação, porque quando acordamos no meio da noite, e com sede, ou tomamos água ou não dormimos mais, ou seja, a falta dessa água-palavra nos incomoda.

“Como um pobre animal palpitando ferido”, grávido de inocência, de instinto e capaz de despertar a compaixão humana. Não sei se acontece com todo mundo, mas eu, por exemplo, tenho uma fixação inexplicável nos olhos dos cães vira-latas: parece que quando os olhamos, são eles que estão a nos olhar, perscrutando o mais íntimo de nós, aquilo que escondemos ou julgamos perdido.

“Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna”. Quando leio esse verso, fico me questionando o porquê da moeda de prata. Talvez porque se ele tivesse escrito “ouro” algo de mercantil se insinuasse, dada a simbologia do termo. Além disso, prata lembra a luz da lua, pelo menos é assim que a descrevem. Assim, nessa floresta noturna – seria a morte? o esquecimento? O inconsciente? – somente a lua, essa que é carente de luz própria, que é mais um astro boiando na amplidão, daria conta do ínfimo brilho da moedinha, o poema mais escondido, engavetado, o que se escreve só no pensamento.

“Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema”, livre de engajamentos sociais, de abstrações, um poema feito de palavras, imerso no insondável universo da palavra, e só. “Triste. Solitário. Único.”, três adjetivos procurando definir o rosto do poema: na tristeza de ser pura palavra, e, assim, representação; na solidão do momento em que nasce, ainda que nasça no/por meio de muitos homens; na unicidade, porque, mesmo sabendo que “todos os poemas são um mesmo poema”, uma palavra nunca se repete: o momento é outro e, por isso, ela também o é.

E, para fechar o círculo, um poema “ferido de mortal beleza”. Eis a intriga: pode a beleza nos matar? Não sei se tenho uma resposta, mas creio que se alimentar do belo nesse mundo cerceado pelos modismos, pela superficialidade, pode ter seu lado fatal. Van Gogh, numa carta ao irmão, disse: “Ache belo tudo o que puder, a maioria das pessoas não acha belo o suficiente”. Procurar beleza pode nos afastar dos outros, mas, por outro lado, a recompensa é gratificante, pois a vida passará em nós com muito mais sentido.

Quintana prefere não definir o que é o poema, ou melhor, não o consegue – e quem conseguiria? – definir senão por imagens, pois são elas que sustentam toda a poesia. E o faz procurando, garimpando aquelas mais simples e cheias de sentido, para que só quem tem olhos e ouvidos possa ver e entender. O leitor que não se iluda diante da simplicidade nem se contente apenas com esses versos, afinal é uma injustiça deixar passar despercebida a obra de um poeta que se fez menino para aprender a não passar, mas a passarinho. À leitura, então!


(Professora Kalliane Amorim.)


segunda-feira, 19 de abril de 2010

Uma crônica de Rubem Alves

Ler e prazer


Nietzsche estava certo: “De manhã cedo, quando o dia nasce, quando tudo está nascendo – ler um livro é simplesmente algo depravado...” É o que sinto ao andar pelas manhãs pelos maravilhosos caminhos da Fazenda Santa Elisa, do Instituto Agronômico de Campinas. Procuro esquecer-me de tudo que li nos livros. É preciso que a cabeça esteja vazia de pensamentos para que os olhos possam ver. Aprendi isso lendo Alberto Caeeiro, especialista inigualável na difícil arte de ver. Dizia ele que “pensar é estar doente dos olhos...” Mas meus esforços são frustrados. As coisas que vejo são como o beijo do príncipe: elas vão acordando os poemas que aprendi de cor e que agora estão adormecidos na minha memória. Assim, ao não pensar da visão une-se o não pensar da poesia. E penso que o meu mundo seria muito pobre se em mim não estivessem os livros que li e amei. Pois, se não sabem, somente as coisas amadas são guardadas na memória poética, lugar da beleza. “Aquilo que a memória amou fica eterno”, tal como o disse a Adélia Prado, amiga querida. Os livros que amo não me deixam. Caminham comigo. Há os livros que moram na cabeça e vão se desgastando com o tempo. Esses, eu deixo em casa. Mas há os livros que moram no corpo. Esses são eternamente jovens. Como no amor, uma vez não chega. De novo, de novo, de novo...

Um amigo me telefonou. Tinha uma casa em Cabo Frio. Convidou-me. Gostei. Mas meu sorriso entortou quando ele disse: “Vão também cinco adolescentes...” Adolescentes podem ser uma alegria. Mas podem ser também uma perturbação para o espírito. Assim, resolvi tomar minhas providências. Comprei uma arma de amansar adolescentes. Um livro. Uma versão condensada da Odisséia, as fantásticas viagens de Ulisses de volta à casa, por mares traiçoeiros...

Primeiro dia: praia; almoço; sono. Lá pelas cinco os dorminhocos acordaram, sem ter o que fazer. E antes que tivessem idéias próprias eu tomei a iniciativa. Com voz autoritária dirigi-me a eles, ainda sob o efeito do torpor: “Ei, vocês... Venham cá na sala. Quero lhes mostrar uma coisa...” Não consultei as bases. Teria sido terrível. Uma decisão democrática das bases optaria por ligar a televisão. Claro. Como poderiam decidir por uma coisa que ignoravam? Peguei o livro e comecei a leitura. Ao espanto inicial seguiu-se silêncio e atenção. Vi, pelos seus olhos, que já estavam sob o domínio do encantamento. Daí para frente foi uma coisa só. Não me deixavam. Por onde quer que eu fosse, lá vinham eles com a Odisséia na mão, pedindo que eu lesse mais. Nem na praia me deram descanso.

Essa experiência me fez pensar que deve haver algo errado na afirmação que sempre se repete de que os adolescentes não gostam da leitura. Sei que, como regra, não gostam de ler. O que não é a mesma coisa que não gostar da leitura. Lembro-me da escola primária que freqüentei. Havia uma aula de leitura. Era a aula que mais amávamos. A professora lia para que nós ouvíssemos. Leu todo o Monteiro Lobato. E leu aqueles livros que se lia naqueles tempos: Heidi, Poliana, A ilha do tesouro. Quando a aula terminava era a tristeza. Mas o bom mesmo é que não havia provas ou avaliações. Era prazer puro. E estava certo. Porque esse é o objetivo da literatura: prazer. O que os exames vestibulares tentam fazer é transformar a literatura em informações que podem ser armazenadas na cabeça. Mas o lugar da literatura não é a cabeça: é o coração. A literatura é feita com as palavras que desejam morar no corpo. Somente assim ela provoca as transformações alquímicas que deseja realizar. Se não concordam, que leiam Guimarães Rosa que dizia que literatura é feitiçaria que se faz o sangue do coração humano.

Quando minha filha estava sendo introduzida na literatura o professor lhes deu como dever de casa ler e fichar um livro chatíssimo. Sofrimento dos adolescentes, sofrimento para os pais. A pura visão do livro provocava uma preguiça imensa, aquela preguiça que Barthes declarou ser essencial à experiência escolar. Escrevi carta delicada ao professor lembrando-lhe que Borges havia declarado que não havia razão para se ler um livro que não dá prazer quando há milhares de livros que dão prazer. Sugeri-lhe começar por algo mais próximo da condição emotiva dos jovens. Ele me respondeu com o discurso de esquerda, que sempre teve medo do prazer: “ O meu objetivo é produzir a consciência crítica...” Quando eu li isso percebi que não havia esperança. O professor não sabia o essencial. Não sabia que literatura não é para produzir consciência crítica. O escritor não escreve com intenções didático-pedagógicas. Ele escreve para produzir prazer. Para fazer amor. Escrever e ler são formas de fazer amor. É por isso que os amores pobres em literatura ou são de vida curta, ou são de vida longa e tediosa... Parodiando as palavras de Jesus “nem só de beijos e transas viverá o amor mas de toda palavra que sai das mãos dos escritores...”

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Um poema de Emily Dickinson

Esse poema eu descobri num dos livros de crônicas de Rubem Alves, chamado "Perguntaram-me se acredito em Deus".


"Alguns guardam o domingo indo à Igreja
Eu o guardo ficando em casa
Tendo um sabiá como cantor
E um pomar por Santuário.

Alguns guardam o domingo em vestes brancas
Mas eu só uso minhas Asas
E ao invés do repicar dos sinos na Igreja
Nosso pássaro canta na palmeira.

É Deus que está pregando, pregador admirável,
E o seu sermão é sempre curto.
Assim, ao invés de chegar ao Céu, só no final,
Eu o encontro o tempo todo no quintal."

Lindo poema, não é mesmo? Combina com os versinhos de Helena Kolody:

"Rezam meus olhos quando contemplo a beleza.
A beleza é a sombra de Deus no mundo."

Um final de semana cheio de beleza para vocês!

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Fahrenheit 451 - parte 2

"- Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos. Estamos vivendo num tempo em que as flores tentam viver de flores, e não com a boa chuva e o húmus preto. Mesmo os fogos de artifício, apesar de toda a sua beleza, derivam de produtos químicos da terra. No entanto, de algum modo, achamos que podemos crescer alimentando-nos de flores e fogos de artifício, sme completar o ciclo de volta à realidade. Você conhece a lenda de Hércules e Anteu, o gigantesco lutador cuja força era invencível desde que ele ficasse firmemente plantado na terra? Mas quando Hércules o ergueu no ar, deixando-o sem raízes, ele facilmente pereceu. Se não existe nessa lenda nenhuma lição para nós hoje, nesta cidade, em nosso tempo, então sou um completo demente. Bem, aí temos a primeira coisa de que precisamos. Qualidade, textura da informação.

- E a segunda?

- Lazer.

- Ah, mas já temos muitas horas de folga.

- Horas d efolga, sim. Mas e tempo para pensar? Quando você não está dirigindo a cento e sessenta por hora, numa velocidade em que não consegue pensar em outra coisa senão no perigo, está praticando algum jogo ou sentado em algum salão onde não pode discutir com o televisor de quatro paredes. Por quê? O televisor é 'real'. É imediato, tem dimensão. Diz o que você deve pensar e o bombardeia com isso. Ele tem que ter razão. Ele parece ter muita razão. Ele o leva tão depressa às conclusões que sua cabeça não tem tempo para protestar:'Isso é bobagem!'.

- Minha mulher diz que os livros não são 'reais'.

- Graças a Deus que não. Você pode fechá-los e dizer: 'Espere um pouco aí'. Você faz com eles o papel de Deus. Mas quem consegue se livrar das garras que se fecham em torno de uma pessoa que joga uma semente num salão de tevê? Ele dá a você a forma que quiser! É um ambiente tão real quanto o mundo. Ele se torna a verdade e é a verdade. Os livros podem ser derrotados cm a razão. Mas com todo o meu conhecimento e ceticismo, nunca consegui discutir com uma orquestra sinfônica de cem instrumentos, em cores, três dimensões, e ao mesmo tempo estar e participar desses incríveis salões. (...)

- E para onde vamos? Os livros nos ajudariam?

- Só se nos fosse dada a terceira coisa necessária. A primeira, como eu disse, é a qualidade da informação. A segunda, o lazer para digeri-la. E a terceira, o direito de realizar ações com base no que aprendemos da interação entre as duas primeiras (...)"


Espero que tenham gostado e procurem ler esse livro, afinal ele é a cara da nossa sociedade, uma sociedade controlada e manipulada como marionetes pelos meios de comunicação de massa.

Fahrenheit 451


Estou lendo essa preciosidade literária de Ray Bradbury, lançada em 1953 e transformada em filme em 1966 pelo diretor François Truffaut. O livro conta a história de uma sociedade futura controlada pelos meios de comunicação de massa, em especial a TV (algo bem distante de nossos dias, não é mesmo?). Nessa sociedade, os livros haviam sido condenados e, por isso, deveriam ser queimados. Os encarregados dessa função passaram a ser os bombeiros. Mas um deles, Guy Montag, começa a tomar consciência da situação através dos livros que roubou em uma de suas ações diárias e, com a ajuda de um professor aposentado, Faber, resolve fugir da cidade.


Um dos trechos mais belos do livro se dá quando Montag vai à casa de Faber à procura de ajuda, e acontece o seguinte diálogo:

"- O que o abalou dessa forma? O que arrancou a tocha de suas mãos?

- Não sei. Temos tudo de que precisamos para ser felizes, mas não somos felizes. Alguma coisa está faltando. Olhei em volta. A única coisa que tive certeza que havia desaparecido eram os livros que queimei durante dez ou doze anos. Por isso, achei que os livros poderiam ajudar.

- Você é um romântico incurável! - disse Faber. - Seria cômico se não fosse trágico. Não é de livros que você precisa, é de algumas coisas que antigamente estavam nos livros. As mesmas coisas poderiam estar nas 'famílias das paredes'. Os mesmos detalhes meticulosos, a mesma consciência poderiam ser transmitidos pelos rádios e televisores, mas não são. Não, não. Absolutamente não são os livros o que você está procurando! Descubra essa coisa onde puder, nos velhos discos fonográficos, nos velhos filmes e nos velhos amigos; procure na natureza e procure em você mesmo. Os livros eram só um tipo de receptáculo onde armazenávamos muitas coisas que receávamos esquecer. Não há neles nada de mágico. A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam um traje para nós, a partir de retalhos do universo. É claro que você não poderia saber disso, é claro que você ainda não pode entender o que quero dizer com tudo isso. Mas intuitivamente está certo, isso é o que conta. Três coisas estão faltando. A primeira: você sabe por que livros como este são tão importantes? Porque têm qualidade. E o que significa a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia passar pelo microscópio. Você encontraria vida sob a lâmina, emanando em profusão infinita. Quanto mais poros, quanto mais detalhes de vida você conseguir captar numa folha de papel, mais 'literário' você será. Pelo menos, esta é a minha definição. Detalhes reveladores. Detalhes frescos. Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a deixam para as moscas."

Continua no próximo post.

Fim do dia

Depois de um dia de trabalho intenso, de uma semana na correria para que as coisas deem certo, nada como chegar em casa, deixar a água levar pelo ralo toda essa poeira de cansaço acumulada na semana, e fazer aquilo que a gente gosta - o que, no meu caso, significa ler, ouvir música, e às vezes escrever...

Remissão

O dia termina de pernas cansadas

O dia com suas varizes profundas

A agenda vestida de náufragas horas

E à tona das horas, uns versos que bóiam

À tona dos dias, canções se recordam

À tona de mim, solidões que se acolhem



(Poema de Kalliane Amorim)