domingo, 26 de setembro de 2010

Falando em variação linguística...

Nossa língua, na verdade, é a mistura de muitas línguas, espalhadas pelo país, cada uma com suas particularidades, refletindo identidades próprias. Pensando nisso, trazemos algumas pérolas de nossa literatura popular: Ai se sesse, de Zé da Luz (pernambucano) e O poeta da roça, de Patativa do Assaré (cearense).

AI SE SESSE

Se um dia nós se gostasse
Se um dia nós se queresse
Se nós dois se impariasse
Se juntim nós dois vivesse
Se juntim nós dois morasse
Se juntim nós dois drumisse
Se juntim nós dois morresse
Se pro céu nós assubisse
Mas porém se acontecesse
De São Pedro não abrisse
A porta do céu e fosse
Te dizer qualquer tolice
E se eu me arriminasse
E tu com eu insistisse
Pra que eu me arresolvesse
E minha faca puxasse
E o bucho do céu furasse
Tarvez que nós dois ficasse
Tarvez que nós dois caísse
E o céu furado arriasse
E as virge toda fugisse


O POETA DA ROÇA

Sou fio das mata, cantô da mão grossa,
Trabáio na roça, de inverno e de estio.
A minha chupana é tapada de barro,
Só fumo cigarro de páia de mío.

Sou poeta das brenha, não faço o papé
De argum menestré, ou errante cantô
Que veve vagando, com sua viola,
Cantando, pachola, à percura de amô.

Não tenho sabença, pois nunca estudei,
Apenas eu sei o meu nome assiná.
Meu pai, coitadinho! vivia sem cobre,
E o fio do pobre não pode estudá.

Meu verso rastêro, singelo e sem graça,
Não entra na praça, no rico salão,
Meu verso só entra no campo e na roça
Nas pobre paioça, da serra ao sertão.

Só canto o buliço da vida apertada,
Da lida pesada, das roça e dos eito.
E às vez, recordando a feliz mocidade,
Canto uma sodade que mora em meu peito.

Eu canto o cabôco com sua caçada,
Nas noite assombrada que tudo apavora,
Por dentro da mata, com tanta corage
Topando as visage chamada caipora.

Eu canto o vaquêro vestido de côro,
Brigando com o tôro no mato fechado
Que pega na ponta do brabo novio,
Ganhando lugio do dono do gado.

Eu canto o mendigo de sujo farrapo,
Coberto de trapo e mochila na mão,
Que chora pedindo o socorro dos home,
E tomba de fome, sem casa e sem pão.

E assim, sem cobiça dos cofre luzente,
Eu vivo contente e feliz com a sorte,
Morando no campo, sem vê a cidade,
Cantando as verdade das coisa do Norte.

Que língua é essa?

Não são poucas as vezes em que, na nossa própria convivência social, emitimos ou escutamos expressões lingüísticas julgadas, por muitos, como erradas. Palavras como “fosfro”, “veve”, “vrido”, ou expressões do tipo “nós vai”, “um pastéis”, “as onda se espaia”, são vistas de modo negativo por aqueles que prezam o bem falar. A conseqüência desastrosa desse fato é o preconceito lingüístico, que, assim como a maioria dos outros no Brasil, é pouco debatido e só continua existindo pela falta de informação e conscientização.
Agora, voltando ao que interessa: por que esses modos de falar são discriminados? É porque não estão de acordo com a gramática normativa, que é a certa e, por isso mesmo, a que ensina a falar bem? E o que é falar bem?
São essas e outras questões que Marcos Bagno, sociolingüista e doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela USP, aborda em seu livro A língua de Eulália (11.ed. São Paulo: Contexto, 2001).
Nessa obra, o autor trata da estrutura, da lógica e do funcionamento do português não-padrão com o objetivo de esclarecer dúvidas e desmitificar preconceitos em relação a essa variedade da língua.
Para tanto, Marcos Bagno cria a personagem Irene, uma professora de português que irá desvendar os mistérios da “última flor do Lácio” a três alunas muito especiais: Vera, sua sobrinha, estudante de Letras; Sílvia e Emília, ambas amigas da primeira e estudantes de Psicologia e Pedagogia, respectivamente. Os conteúdos contemplados na obra são trabalhados pela professora depois que as meninas, por pura ignorância, comentam o falar “errado” de Eulália, a empregada de Irene.
Focalizando a língua portuguesa em seus aspectos sociais, o autor apresenta explicações para diversos problemas que permeiam a variedade não-padrão da língua. Para fundamentar sua análise, Marcos Bagno recorre com freqüência a fatores relevantes como a evolução e as variações comuns em qualquer idioma, bem como às obras de autores especialistas no assunto. E, para facilitar o entendimento, usa os mais variados textos, desde alguns fragmentos de Os Lusíadas até Cuitelinho, uma canção popular do Centro-Oeste/Sudeste do Brasil.
Baseado em estudiosos como William Labov, Magda Soares, Stella Maris Bortoni, Maurizzio Gnerre, entre outros, Marcos Bagno chega à conclusão de ser o português padrão uma língua ideal, que serve apenas de modelo para as produções lingüísticas reais dos falantes, os quais nunca conseguirão atender a todas as regras impostas por essa norma.
Por outro lado, ele faz uma série de elogios ao português não-padrão, considerando-o mais dinâmico e original, o que pode levar o leitor a crer que a sua pretensão é abolir a norma culta. Na verdade, Marcos Bagno é categórico ao afirmar que o ensino de Língua Portuguesa deve ser crítico e que não pode haver preconceitos quanto ao uso de variedades não-padrão no meio escolar, pois, ao mesmo tempo em que se discrimina essas diferentes formas de expressão, está-se menosprezando a identidade de seus respectivos falantes.
Dessa forma, o ensino de Língua Portuguesa deve ter como objetivo tornar o falante um poliglota em sua própria língua, capacitado a adaptar seu discurso a diferentes contextos, e não um compêndio ambulante de regras gramaticais que nunca são usadas completamente.
Através de uma linguagem clara e concisa, Marcos Bagno faz com que um assunto restrito ao âmbito acadêmico se torne acessível a qualquer leitor. É nesse sentido que A língua de Eulália pode ser um instrumento valioso para professores da área e também para os demais leitores, que, com a oportunidade de conhecer o funcionamento de um português estigmatizado, poderão combater o preconceito lingüístico tão arraigado em nossa cultura.

(Professora Kalliane Amorim)

domingo, 18 de julho de 2010

Reflexão para um dia de domingo

Lendo de Rubem Alves o livro "Perguntaram-me se acredito em Deus", encontro a frase:

"Só se deve falar quando a fala melhora o silêncio."

Bom domingo, e até a próxima!

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Mensagem a um desconhecido

Cecília Meireles


Teu bom pensamento longínquo me emociona.
Tu, que apenas me leste,
acreditaste em mim, e me entendeste profundamente.

Isso me consola dos que me viram,
a quem mostrei toda a minha alma,
e continuaram ignorantes de tudo que sou,
como se nunca me tivessesm encontrado.


(Fevereiro de 1956)

Eternidade inútil

Cecília Meireles



Até morrer estarei enamorada
de coisas impossíveis:

tudo que invento, apenas,
e dura menos que eu,
que chega e passa.

Não chorarei minha triste brevidade:
unicamente a alheia,
a esperança plantada em tristes dunas,
em vento, em nuvens, n'água.

A pronta decadência,
a fuga súbita
de cada coisa amada.

O amor sozinho vagava.
Sem mais nada além de mim...
numa eternidade inútil.

Apontamento

Cecília Meireles



Ó noite, ó noite, ó noite!
Luar e primavera
e os telhados cobrindo
sonhos que a vida gera!

Subo por essas horas
solitária e sincera,
e encontro, exausta e pura,
minha alma que me espera.

(2 de maio de 1959)

terça-feira, 29 de junho de 2010

Tanto tanto - Vander Lee

Eu olho o mundo da janela
eu vejo o filme além da tela
os dias passam como por encanto

Eu passo como quem não passa
sou meio triste e acho graça
tem tanta gente triste que disfarça

Caminho ao seu lado sem falar
mas canto uma canção pra te alegrar
só peço que não tente compreender
tanto tanto

Dou tudo pelo seu carinho
mas gosto de ficar sozinho
olhando da janela do meu quarto

Mas quando você chega tarde
eu quase morro de saudade
já louco pra fazer suas vontades

Caminho ao seu lado sem falar
mas canto uma canção pra te alegrar
só peço que não tente compreender
tanto tanto

Nenhum de nós conhece o mundo
o bem o mal o céu profundo
no fundo tudo é muito diferente...

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Desejo simples

Vai passando o carroceiro

na redoma imaculada

da humildade.


Seu olhar fita a capela,

o sino, o santo que vela

a cidade.


Eu queria ser-lhe a lágrima,

o gesto, o chapéu de palha

neste instante.


E tornar branca a paisagem

que me fiz como estiagem

tão constante.


Tudo segue seu destino

e o humilde peregrino

vai-se embora.


Só eu fico na clausura

de mim, à minha procura

noutro agora...


(Poema de Kalliane Amorim)

Nas grades da ponte

Nas grades da ponte é o título do segundo CD de Graciele de Lima, que, além de compor, canta, toca e escreve não só músicas, como também poemas e contos. Aqui vai uma das canções que compõem o CD:

Manhã (Tráfego)

Enquanto espero no sinal fechado
Enquanto berro, grito pra todos os lados
Muito já avançam e tocam um fim
E esse meu brado abafado deixo ecoar só em mim

E aí olho pro lado
O tráfego continua e só eu
Permaneço estátua na rua tentando encontrar
A chave que por milagre venha me achar
Afinal, não é mal querer me encontrar

Vejo carros e passos apressados ou mansos a passar
E olhar atentos o meu estar
Fustigar meu medo, questionar
A vida termina e eu preciso começar

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Ferida



Três pétalas feriram

de amarelo mais um livro:

não sei que pensamentos,

olhando aquelas manchas,

me deixam empedernido.

Ficarão ali durante

o eterno que se escoa?

Atravessarão – punhais –

o peito de todo canto?

Meus olhos são essas folhas

trespassadas de espanto.



Poema de Kalliane Amorim

Ofício


Minha avó punha linha nas bobinas,

e na máquina de pedal

o seu pé ia e vinha,

emendando retalhos

para a família

que em seu colo crescia.


Ah, mas que triste essa outra sina

de nas bobinas só ter palavras,

e nas palavras, tantos destinos,

e só saber costurar retalhos

para as mortalhas de minhas vidas!



Poema de Kalliane Amorim.

domingo, 9 de maio de 2010

Ainda a doçura de Cora...



Humildade

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.

Um domingo com a doçura de Cora Coralina



Saber Viver

Não sei… Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura… Enquanto dura.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Um pouco de Rilke

Rainer Maria Rilke nasceu em Praga no dia 4 de dezembro de 1875. Depois de viver uma infância solitária e cheia de conflitos emocionais, estudou nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Suas primeiras obras publicadas foram poemas de amor, intitulados Vida e canções (1894). Publicou também Histórias do bom Deus (1900), O livro das horas (1905), A vida de Maria (1913), Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu (1923), sendo estes inspirados no período em que viveu no castelo de Duíno, próximo a Trieste (Itália). Uma de suas mais belas publicações sobre o fazer poético se encontra nas Cartas a um jovem poeta, das quais transcrevemos o trecho a seguir:


“Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão.


Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza – relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade.


Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre a sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, este tesouro de recordações? (...)


Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade.”